Caros amigos,
Saramago escreveu outro livro. O seu título é “Caim”, e Caim é um dos protagonistas principais. Outro é Deus, outro ainda é a humanidade nas suas diferentes expressões. Neste livro, tal como nos anteriores, “O Evangelho segundo Jesus Cristo”, por exemplo, o autor não recua diante de nada nem procura subterfúgios no momento de abordar o que, durante milénios, em todas as culturas e civilizações foi considerado intocável e não nomeável: a divindade e o conjunto de normas e preceitos que os homens estabelecem em torno a essa figura para exigir a si mesmos - ou talvez fosse melhor dizer para exigir a outros - uma fé inquebrantável e absoluta, em que tudo se justifica, desde negar-se a si mesmo até à extenuação, ou morrer oferecido em sacrifício, ou matar em nome de Deus.
Caim não é um tratado de teologia, nem um ensaio, nem um ajuste de contas: é uma ficção
Este último romance de José Saramago, que não é muito extenso, nem poderia sê-lo porque necessitaríamos mais fôlego que o que temos para enfrentar-nos a ele, é literatura em estado puro. Dentro de pouco tempo podereis lê-lo em português, castelhano e catalão, e então vereis que não exagero, que não me move nenhum desordenado desejo ao recomendá-lo: faço-o com a mais absoluta subjectividade, porque com subjectividade lemos e vivemos. E falo aos amigos, porque esta carta apenas a eles vai dirigida. Com muita alegria.
Felicidades a todos os leitores: um ano depois de A Viagem do Elefante temos outro Saramago. São três livros em um ano, porque também há que contar com O Caderno, o livro que vamos lendo aqui em cada dia. Não podemos pedir mais, o nosso homem cumpriu, e de que maneira. A idade, amigos, aguça a inteligência e agiliza a capacidade de trabalho. Que sorte a nossa, leitores, de ter quem nos escreva.
Pilar del Rio
Extraído de: Caderno de Saramago
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