Este é um blog de opinião. As postagens escritas ou selecionadas refletem exclusivamente a minha opinião, não sofrendo influência ou pressão de pessoas ou empresas onde trabalho ou venha a trabalhar.

quarta-feira, 6 de maio de 2009

São José de Arribamar

Ainda não fui embora pra pasárgada.
Nos últimos três dias estive assobiando e chupando cana. Além do que, no último domingo, aquele gente fina de mariachiquinha no cabelo me deu um tremendo porre de felicidade.
Então, para não decepcionar um bom amigo, que diz ter certeza que quando desapareço por uns dias é para reaparecer com alguma novidade, publico (sem o devido cuidado com a correção), um pequeno texto que deverá figurar num próximo livro.
Meio invencionice, meio cômico e meio crítico.
São José de Arribamar
Meu avô é um homem honesto, principalmente para as coisas que exigem honestidade e apesar de ter estudado apenas uma semana com a Professora Djanira Arraes em 1928, mal aprendeu a fazer o próprio nome. Mas, insisto, é um homem honesto. Nunca falamos sobre isso, até porque honestamente, nunca tive tal ousadia de duvidar, talvez com receio de ouvir uma confissão, quem sabe da mais remota infância, sobre uma pequena rapinagem ou negócio de cigano.

De tanto ouvir os conhecidos enfatizarem essa sua virtude, passei a avaliar melhor suas palavras e suas histórias.

Uma delas aconteceu numa época de grande aperreio financeiro, de trincamento, quebra de patrões e miséria de seringueiros.

Era o primeiro repiquete daquele ano e a pauzada que descia não vinha fácil. Era de tudo: canarana, bananeira, canabraba, urana, tábua de lavar roupa, samaúma e até animais empanzinados.

Uma chuvinha apenas e a surpresa. Rapidamente o aguaceiro começou a encobrir as praias e a surpreender os agricultores de praias e barrancos. Os fortes trovões do início da semana voltavam agora em forma de inundação. Rápida, espumante e barrenta.

Ia subindo o rio pela costa da praia acima da boca do Maloca, com o filho mais velho, Raimundo Nonato, numa canoa pesada feito o diabo, mal feita, sem alvôro, sem aparelhamento e com duas tábuas servindo de banco, uma na proa e outra na popa carregada de mandioca da praia. A corredeira mais horrível do mundo empurrava a canoa para baixo. Era uma luta.

Num balseiro, misturada com pastas, canaranas e espuma, bem perto da canoa, viu um principe de borracha. Com a pá do remo puxou-a para perto e a embarcou. Pesava uns dez quilos, era bem feitinha, lisa, sem nenhum caroço o que dava a idéia de ter sido defumada com o melhor leite das melhores seringueiras, das melhores estradas, coado em pano fino. Num dos lados estava escrito um letreiro que pelo pouco saber não conseguiu destrinchar. Encostou a canoa antes que a corredeira a levasse rio abaixo.

Raimundo, que já estudava a segunda série da Escola Rural teve a responsabilidade de decifrar o letreiro. Apesar de avançado na literatura não foi tarefa das mais fáceis. Mesmo assim, com enorme dificuldade, conseguiu pronunciar: S-ã-o J-o-s-é d-e A-r-r-i-b-a-m-a-r.

Meu avô calculou alguns pensamentos, mas rapidamente decidiu:
- Joga n’água!
- Mais papai...
- É promessa rapaz, joga, joga!
Tristemente obedeceu, devolvendo ao rio aquele principi que bem vendido daria para comprar muita coisa.
O principi, sem demonstrações de sentimentos, após um pequeno mergulho, flutuou, agora muito mais camuflado e acomodado entre os basculhos flutuantes. Foi se distanciando rapidamente.
Passado algum tempo, os dois se perceberam contemplando o rio que baixava, levando em seu leito uma borracha-promessa.

Soltou a canoa e o exercício forçado reiniciou.
Era sábado e o aperreio da farinhada entrou noite adentro, carregando mandioca para a casa de farinha para que no domingo pela manhã as mulheres e os meninos iniciassem a raspagem e os homens fossem tirar lenha para torrar a massa na segunda feira.

Foi uma grande farinhada. Não apenas pela quantidade de paneiros que rendeu, mas, principalmente, pelo assunto que envolveu o ambiente.

E foi mesmo a questão do principi. Assuntos comuns, de bom juízo cochichados, como os chifres de um, o cabaço perdido no escuro, o bucho inesperado, um parto, ou uma caçada, até entravam na roda, mas logo se esgotavam, pela gravidade e pela irrelevância diante de uma polêmica.

A questão era grave, controversa, de difícil entendimento, pois uma parte dos participantes discordava do Jararaca por ter jogado a sorte no rebojo e a outra parte, a menor é bem verdade, não lhe tirava a razão. Nunca um lugar tão pequeno esteve tão bem servido de profissionais do direito. Ali, distante da sede da comarca, mesmo sem entender patavina de direito constitucional, qualquer fuleiro se achava no direito de exercer a advocacia e a magistratura. O julgamento que deveria ter a exata duração da farinhada extrapolou seus limites e avançou pelas ladeiras e baixadas da vila chegando até as cacimbas do Igarapé da Represa.

Há muitos anos, o diabo tinha montado um pequeno negócio na vila, algo como um jornal, e como tivesse que resolver outros assuntos, em outros infernos, deixou algumas pessoas de sua confiança ir tocando a empresa e foi embora. Esses responsáveis eram as fuxiqueiras e os fuxiqueiros que pelo ofício, além de inventar coisas, ainda aumentavam na medida que achassem convenientes. Transformaram o pequeno jornal num enorme empreendimento, que apesar de não ter uma única linha escrita, com exceção das cartas falsas, esquecidas de propósito em locais de maior movimento, envolvia toda a comunidade, numa velocidade inacreditável.

Na segunda-feira, a enorme borracha, quer dizer, o pequeno principi encontrado por Jararaca flutuando entre os basculhos do repiquete, um pouco acima da Boca do Maloca, já pesava pra mais de duzentos quilos, e estampava no lombo, frases e mais frases, orações, ladainhas e dedicatórias sobre o destino daquela promessa.

Teria a borracha-promessa, no dizer dos patifes, frases do tipo: “Quem quiser pode ficar” ou “São José quer te ajudar”. E outras variações, a critério do autor, mas mantendo sempre no final a terminação em “ar”.

Na solidão de borracha-promessa, na tocada do banzeiro, o principe buscava o mar. E como as questões de borracha terminavam na delegacia, alguém sugeriu a instauração de um inquérito para apurar as responsabilidades.

Na opinião dos radicais, a justiça deveria investigar rio acima, para saber qual seringueiro, pertencente a qual seringal, teria cometido aquele crime de desviar borracha das estradas. Para aqueles, seringueiro que jogava uma borracha no rio estaria cometendo crime igual a vendê-la a regatão, ou na melhor das hipóteses, seria um caso preocupante de demência.

Estranhamente, o delegado conhecido de todos pela dureza contra o crime, não acatou a denúncia. Alegava falta de competência para arbitrar sobre tal assunto, que a seu ver, por envolver promessa a santo, era coisa da igreja.

E como era de sua competência, o padre ficou sabendo.
E como tinha autoridade suficiente, mandou chamar o principal envolvido no caso para cobrar-lhe explicações:

Chico Jararaca não era de se fazer esperar e na mesma hora foi saber o que era. O padre era alemão:

- Oh, Chico, cadê a nossa borracha?
- Que borracha, padre?
- A borracha que você achou descendo no rio, vindo para a igreja, aquela borracha era nossa.

- Ah, sim! Achei mesmo, padre, mas o letreiro do nome do santo que tinha nela, o meu menino leu e tava dizendo de quem era. Era São José de Arribamar, padre, e eu não lembro de ter visto nenhum santo aqui na igreja com esse nome, aí eu achei que no rumo de baixo tivesse algum. E além do mais, eu me topei com ela abaixo daqui.

- Oh, Chico, você não entende, aqui na igreja é a morada de todos os santos.

- Ah, bom! Padre eu venho na igreja todo domingo, e só tenho visto quatro: Jesus – atrás do altar, Sagrado Coração de Jesus – de um lado, Nossa Senhora – do outro, e São Francisco de Assis ali atrás. Só se é lá por dentro da sacristia que tem o resto!

- Oh, Chico, você não entende mesmo de santos!
Com uma frase, e por falta de entendimento em santos, o assunto da borracha de São José de Arribamar foi encerrado.

2 comentários:

Unknown disse...

ADMIRO PELOS COMETÁRIOS INTELIGENTES QUE LHE SÃO DE PRAXE, PORÉM O DO JARARACA VAI FICANDO NO TOPO, DOS MSIS BEM ELABORADOS, DE UMA SUTILEZA SEM TAMANHO, UM GRANDE ABRAÇO.

Antonio Franciney disse...

Valeu! Você salvou meu blog pois estava quase pensando em desistir dele. Sao José de Arribamar é história.