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domingo, 21 de março de 2010

Cão-de-Sete-Orelhas (parte final)


José Francisco não poderia ser enquadrado entre os fobentos, arengueiros ou maluvidos. Também não era o exemplo de raquitismo. Embora fosse amareloso, meio empambado, quase verde, apresentava um bom crescimento. José Francisco por nascimento, apenas a professora considerava o batistério. Para todos, era sempre o Pintadinha ou Onça, alcunha referente ao pano-branco de corpo inteiro, que o deixava por vezes camuflado. Cão-de-Sete-Orelhas, pelas orelhas de abano, moles e incrivelmente vermelhas, contrastando com o amarelo da pele, certamente por conta dos chulepes à traição que recebia, e Medalha, devido à impingem sempreviva, bem no meio do peito, horrorosa e imortal. O mais calado dos calados, o mais onço dos sonsos. Nunca ria e estava sempre em guarda, arreliado. Pouco falava, rouco e monossilábico.
            Por tudo isso, e se as professoras sustentassem razão, deveria ser o melhor aluno da sala, calado e atencioso, mas era, sem maldade alguma, dono de um dos piores boletins, acanalhado de notas vermelhas, destaque apenas para Religião e Comportamento. Por morar do outro lado do rio, estava sempre sozinho nos recreios, preferencialmente encostado à parede, só olhando.
            Pois foi ele, José Francisco Onça Cão-de-Sete-Orelhas das Medalhas, a exceção da regra. Enquanto as mães escoltavam os filhos na fila da vacina, recapturando fugitivos pela orelha, José Francisco seguia resignado, consciencioso, irritantemente calado, como se concordasse com aquela monstruosidade. A poucos metros da porta, contrariando a própria personalidade, sempre obediente e servil, arremeteu em incrível carreira, saltou a cerca da escola e sumiu. Voluntários ainda vasculharam as imediações da escola sem sucesso, deveria estar camuflado no goiabal da escola ou metido em algum buraco.
            Às 4 da tarde, mais ou menos, levantando palha das casas, tirando fino nos paus e causando alívio, o helicóptero da vacina sumiu, deixando em todas as moradias braços espetados e imunidade por muitos e muitos anos.
                        Pois foi. José Francisco foi o único cristão que escapou da fila dos carniceiros.

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