Há três anos, num barranco acima da foz do Rio Valparaíso, na margem direita do rio Juruá no Seringal Russas, após uma enchente, surgiu “pantaforma” pendurada no barranco. Era uma sepultura. Feita em alvenaria, com tijolos de quatro furos, ladeada na parte superior com pedra de mármore branca.
De início os catraieiros, os pescadores ou viajantes mais curiosos, paravam um pouco, se admiravam e retomavam suas viagens.
Um desses curiosos, com um machado na mão, grosseiramente imitando Howard Carter no Vale dos Reis, diante da tumba do “rei-menino” na década de 20, violou a sepultura e ao contrário de Carter, não encontrou tesouros, sequer um cadáver, um osso que fosse, uma maldiçãozinha qualquer, como uma ferrada de arraia, um lacrau, uma tucandeira, nada.
Com o tempo, deixou de impressionar, era apenas um túmulo no barranco que não resistiria aos solavancos e às pupunhadas dos primeiros repiquetes.
Antes de ser violada, eu também passei por lá e as inquietações, as perguntas sobre aquela estranha visão ocuparam-me durante o restante das praias e voltas de baixada até Cruzeiro do Sul. Comentei o assunto com alguns conhecidos, fiquei de investigar sua origem e por razões de prioridade acabei investigando outras tantas coisas que findei esquecendo.
Na verdade, as ocupações me forçaram a esquecê-la. Afinal, o que têm de importante e inusitado numa sepultura pendurada num barranco qualquer do rio Juruá, diante da necessidade imperiosa de passar no Bazar Morais, do Januário, todos os dias entre cinco e cinco e meia da tarde para comprar o bom e velho pão que os supermercados não conseguem imitar? Pois bem, nada importante. Mas, convenhamos, ali na beira de um barranco, construída em alvenaria, ladeada com pedaços de mármore e longe de cidades, no meio do quase nada?
Foi Epaminondas Magalhães, “O homem mais positivo que ele conhece”, quem me relembrou a prometida investigação. Um pouco como desafio e também, acredito, como curiosidade. Um amigo dele, conhecido meu, teria em casa um tijolo com a inscrição “Belém” e um pedaço do mármore onde se poderia ler claramente um número, que numa lápide só poderia ser uma data: 1898. E dois nomes: Jonas Coelho.
Surgiu dessa forma, o motivo que faltava para viajar, voltar a falar um pouco de História e fotografar a sepultura antes que despencasse no leito do rio talvez para sempre.
Pessoas normais, quando em férias, viajam a Rio Branco, Natal, Belo Horizonte, Ouro Preto... Quanto a mim, prefiro a insegurança supersegura de uma catraia tocada por um Honda de 13 com palheta de antimônio e visitar lugares com os mesmos nomes. E daí, qual é o problema?
O rio Juruá é uma das minhas paixões e hoje muito mais, porque tenho certeza que não demora o dia, que sentiremos saudades daquele rio navegável e profundo, e, sujeitos feito eu, que hoje curtem viajar de barco não sentirão o mesmo prazer.
Fazia dez anos que não navegava no verão. Nenhum tracajá, nenhum jacaré tomando sol. Fiquei alarmado com a quantidade de vasilhames de corote ou tampa-azul flutuando indecisos, errantes, encalhados nas praias e nos balseiros. Arcabouços de um prazer que mata. Seguros da longevidade do plástico. Os pescadores, catraieiros ou trabalhadores das praias e barrancos o consomem loucamente.
No verão o rio é mais bonito e nos permite a contemplação de muitas coisas. Como a sepultura que apareceu do nada naquele barranco. Para registrá-la, só mesmo no verão.
Deixamos Cruzeiro ainda adormecida, e às 9:45 da manhã, lá estava ela, no mesmo barranco, no silencioso, longo e desabitado barranco. Sem um ponto de ancoragem, firmada sobre a própria tonelagem. Algumas fotos, uma rápida observação, e a História e seus questionamentos: Quem teria sido seu ilustre proprietário? Qual o contexto histórico em que tal ou tais personagens viveram?
Uma consulta à biblioteca (a minha, digo, já em casa uma semana depois) e as primeiras respostas. A maior parte delas, extraída de “O Juruá Federal”, de J. M. Brandão Castelo Branco Sobrinho, o mais completo relato sobre a origem dos seringais do antigo Departamento do Alto Juruá.
Por situar-se acima da foz do Rio Valparaíso, pertence ao Seringal Russas.
No início tudo era Valparaíso, tanto a margem esquerda como a direita do mesmo rio. Foi explorado em 1884 por Ismael Galdino da Paixão que o vendeu a Antonio Geraldo da Silva. Após um ano mais ou menos, a propriedade passou a Vicente Coelho que se associou a João Bussons e Pedro Gomes. Com a morte de Vicente Coelho a propriedade foi dividida entre os sócios. Na divisão, aos herdeiros de Vicente Coelho, Jonas e Julieta, coube a margem esquerda. A sepultura em questão despencou exatamente daquele sítio, portanto, no Seringal Russas, assim batizado anos mais tarde por um cearense de São Bernardo de Russas, proprietário do referido seringal por um breve período. Em 1941 o seringal volta a pertencer a Jonas e Julieta que adotam definitivamente o nome, assim conhecido até hoje.
Um simples pedaço de mármore pode responder muitas questões, e ao mesmo tempo, suscitar outras.
No ano de 1898 todos os principais seringais que deram forma ao mapa do hoje Estado do Acre no Juruá já estavam explorados e produzindo borracha.
É possivelmente, a data de nascimento do inquilino da sepultura em questão.
Informações dão conta de que já avançado em idade, o velho seringalista fizera um pedido aos parentes: Ser enterrado no próprio seringal, à sombra de uma enorme seringueira, bem ao lado do varadouro. O rio, que na época passava a centenas de metros, resolveu passar por ali.
A história continua. Ano após ano, e década após década, silenciosamente, quando menos se espera, ela ressurge, na forma de um túmulo pendurado num barranco qualquer do rio, para a contemplação de todos os viajantes.
Simples monumento do passado eternizado em fotos que contam histórias.
Um comentário:
Nossa que história!!!!!!!!!!
Será que tem algum grau de parentesco com Seu Raimundo Coelho?
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