Nem preciso repetir da minha
admiração pelo estilo de Euclides da Cunha. Hoje, Sábado de Aleluia, reproduzo
o seu conto “Judas-asvero” publicado em “A Margem da História” e “Um Paraíso Perdido”. Encontrei o texto em diversos sites e tomei o cuidado de verificar (comparando ao texto impresso de uma publicação de 1968) a grafia original, mas é bem possível que alguns erros tenham sobrevivido. Uma boa leitura para o sábado. Não esqueça o dicionário.
JUDAS-ASVERO
No sábado de Aleluia os
seringueiros do Alto Purus desforram-se de seus dias tristes. É um desafogo.
Ante a concepção rudimentar da vida santificam-se-lhes, nesse dia, todas as
maldades. Acreditam numa sanção litúrgica aos máximos deslizes.
Nas alturas, o Homem-Deus, sob o
encanto da vinda do filho ressurreto e despeado das insídias humanas, sorri,
complacentemente, à alegria feroz que arrebenta cá em baixo. E os seringueiros
vingam-se, ruidosamente, dos seus dias tristes.
Não tiveram missas solenes, nem
procissões luxuosas, nem lavapés tocantes, nem prédicas comovidas. Toda a
Semana Santa correu-lhes na mesmice torturante daquela existência imóvel, feita
de idênticos dias de penúrias, de meios-jejuns permanentes, de tristezas e de
pesares, que lhes parecem uma interminável sexta-feira da Paixão, a estirar-se,
angustiosamente, indefinida, pelo ano todo afora.
Alguns recordam que nas paragens
nativas, durante aquela quadra fúnebre, se retraem todas as atividades –
despovoando-se as ruas, paralisando-se os negócios, ermando-se os caminhos – e
que as luzes agonizam nos círios bruxuleantes, e as vozes se amortecem nas
rezas e nos retiros, caindo um grande silêncio misterioso sobre as cidades, as
vilas e os sertões profundos onde as gentes entristecidas se associam à mágoa
prodigiosa de Deus. E consideram, absortos, que esses sete dias excepcionais,
passageiros em toda a parte e em toda a parte adrede estabelecidos a maior
realce dos outros dias mais numerosos, de felicidade – lhes são, ali, a
existência inteira, monótona, obscura, doloríssima e anônima, a girar
acabrunhadamente na vida dolorosa e inalterável, sem princípio e sem fim, do
círculo fechado das "estradas". Então pelas almas simples entra-lhes,
obscurecendo as miragens mais deslumbrantes da fé, a sombra espessa de um
conceito singularmente pessimista da vida: certo, o redentor universal não os
redimiu; esqueceu-os para sempre, ou não os viu talvez, tão relegados se acham
à borda do rio solitário, que no próprio volver das suas águas é o primeiro a
fugir, eternamente, àqueles tristes e desfreqüentados rincões.
Mas não se rebelam, ou
blasfemam. O seringueiro rude, ao revés do italiano artista, não abusa da
bondade de seu deus desmanchando-se em convícios. É mais forte; é mais digno.
Resignou-se à desdita. Não murmura. Não reza. As preces ansiosas sobem por
vezes ao céu, levando disfarçadamente o travo de um ressentimento contra a
divindade; e ele não se queixa. Tem a noção prática, tangível, sem raciocínios,
sem diluições metafísicas, maciça e inexorável – um grande peso a esmagar-lhe
inteiramente a vida – da fatalidade; e submete-se a ela sem subterfugir na
covardia de um pedido, com os joelhos dobrados. Seria um esforço inútil.
Domina-lhe o critério rudimentar uma convicção talvez demasiado objetiva, ou
ingênua, mas irredutível, a entra-lhe a todo o instante pelos olhos adentro,
assombrando-o: é um excomungado pela própria distância que o afasta dos homens;
e os grandes olhos de Deus não podem descer até aqueles brejais, manchando-se.
Não lhe vale a pena penitenciar-se, o que é um meio cauteloso de rebelar-se,
reclamando uma promoção na escala indefinida de bem-aventurança. Há
concorrentes mais felizes, mais bem protegidos, mais numerosos, e, o que se
lhes figura mais eficaz, mais vistos, nas capelas, nas igrejas, nas catedrais,
e nas cidades ricas onde se estadeia o fausto do sofrimento uniformizado de
preto, ou fugindo na irradiação de lágrimas, e galhardeando tristezas…
Ali, - é seguir, impassível – e
mudo, estoicamente, no grande isolamento da sua desventura.
Além disto, só lhe é lícito
punir-se da ambição maldita que o conduziu àqueles lugares para entregá-lo,
manietado e escravo, aos traficantes impunes que o iludem, e esse pecado é o
seu próprio castigo, transmudando-lhe a vida numa interminável penitência. O
que lhes resta a fazer é desvendá-la e arrancá-la da penumbra das matas,
mostrando-a, nuamente, na sua forma apavorante, à humanidade longínqua…
***
Ora, para isso, a Igreja dá-lhe
um emissário sinistro: Judas; e um único dia feliz: o sábado prefixo aos mais
santos atentados, às balbúrdias confessáveis, à turbulência mística dos eleitos
e à divinização da vingança.
Mas o monstrengo de palha,
trivialíssimo, de todos os lugares e de todos os tempos, não lhes basta à
missão complexa e grave. Vem batido de mais pelos séculos e fora tão pisoado,
tão decaído e tão apedrejado que se tornou vulgar na sua infinita miséria,
monopolizando o ódio universal e apequenando-se, mais e mais, diante de tantos
que o malquerem.
Faz-se-lhe mister, ao menos
acentuar-lhe as linhas mais vivas e cruéis; e mascarar-lhe no rosto de pano, e
laivos de carvão, uma tortura tão trágica, e em tanta maneira próxima da
realidade, que o eterno condenado pareça ressuscitar ao mesmo tempo que a sua
divina vítima, de modo a desafiar uma repulsa mais espontânea e um mais
compreensível revide, satisfazendo à saciedade as almas ressentidas dos
crentes, com a imagem tanto quanto possível perfeita da sua miséria e das suas
agonias terríveis.
E o seringueiro abalança-se a
esse prodígio de estatuaria, auxiliado pelos filhos pequeninos, que deliram,
ruidosos, em risadas, a correrem por toda a banda, em busca das palhas esparsas
e da farragem repulsiva de velhas roupas imprestáveis, encantados com a tarefa
funambulesca, que lhe quebra tão de golpe a monotonia tristonha de uma
existência invariável e quieta.
O judas faz-se como se fez
sempre: um par de calças e uma camisa velha, grosseiramente cozidos, cheios de
palhiças e mulambos; braços horizontais, abertos, e pernas em ângulo, sem
juntas, sem relevos, sem dobras, aprumando-se, espantadamente, empalado, no
centro do terreiro. Por cima uma bola desgraciosa representando a cabeça. É o
manequim vulgar, que surge em toda a parte e satisfaz à maioria das gentes. Não
basta ao seringueiro. É-lhe apenas o bloco de onde vai tirar a estátua, que, é
a sua obra prima, a criação espantosa do seu gênio longamente espalhado de revezes,
onde outros talvez distingam traços admiráveis de uma ironia sutilíssima, mas
que é para ele apenas a expressão concreta de uma realidade dolorosa.
E principia, às voltas com a
figura disforme: salienta-lhe e afeiçoa-lhe o nariz; reprofunda-lhe as órbitas;
esbate-lhe a fronte; acentua-lhe os zigomas; e aguça-se o queixo, numa massagem
cuidadosa e lenta; pinta-lhe as sobrancelhas, e abre-lhe com dois riscos
demorados, pacientemente, os olhos, em geral tristes e cheios de um olhar
misterioso; desenha-lhe a boca, sombreada de um bigode ralo, de guias decaídas
aos cantos. Veste-lhe depois, umas calças e uma camisa de algodão, ainda
servíveis; calça-lhe umas botas velhas, cambadas…
Recua meia dúzia de passos.
Contempla-a durante alguns minutos. Estuda-a.
Em torno a filharada, silenciosa
agora, queda-se expectante, assistindo ao desdobrar da concepção, que a
maravilha.
Volve ao seu homúnculo:
retoca-lhe uma pálpebra; aviva um ríctus expressivo na arqueadura do lábio;
sombreia-lhe um pouco mais o rosto, cavando-o; ajeita-lhe melhor a cabeça;
arqueia-lhe os braços; repuxa e retifica-lhe as vestes…
Novo recuo, compassado, lento,
remirando-o, para apanhar de um lance, numa vista de conjunto, a impressão
exata, a síntese de todas aquelas linhas; a renovar a faina com uma pertinácia
e uma tortura de artista incontentável. Novos retoques, mais delicados, mais
cuidadosos, mais sérios: um tenuíssimo esbatido de sombra, um traço quase imperceptível
na boca refegada, uma torção insignificante no pescoço engravatado de trapos…
E o monstro, lento e lento, num
transfigurar-se insensível, vai-se tornando em homem. Pelo menos a ilusão é
empolgante…
Repentinamente o bronco
estatuário tem um gesto mais comovedor do que o parla! ansiosíssimo, de Miguel Ângelo; arranca o seu próprio
sombreiro; atira-o à cabeça de Judas; e os filhinhos todos recuam, num grito,
vendo retratar-se na figura desengonçada e sinistra o vulto do seu próprio pai.
É um doloroso triunfo. O
sertanejo esculpiu o maldito à sua imagem. Vinga-se de si mesmo: pune-se
afinal, da ambição maldita que o levou àquela terra; e defronta-se da fraqueza
moral que lhe parte os ímpetos da rebeldia recalcando-o cada vez mais do plano
inferior da vida decaída onde a credulidade infantil o jungiu, escravo, à gleba
empantanada dos traficantes, que o iludiram.
Isto, porém, não lhe satisfaz. A
imagem material da sua desdita não deve permanecer inútil num exíguo terreiro
de barraca, afogada na espessura impenetrável, que furta o quadro de suas
mágoas, perpetuamente anônimas, aos próprios olhos de Deus. O rio que lhe passa
à porta é uma estrada para toda a terra. Que a terra toda contempla o seu
infortúnio, o seu exaspero cruciante, a sua desvalia, o seu aniquilamento
iníquo, exteriorizados, golpeantemente, e propalados por um estranho e mudo
pregoeiro…
Embaixo, adrede construída,
desde a véspera, vê-se uma jangada de quatro paus boiantes, rijamente
travejados. Aguarda o viajante macabro. Condu-lo, prestes, para lá,
arrastando-o em descida, pelo viés dos barrancos avergoados de enxurros.
A breve trecho a figura
demoníaca apruma-se, especada, à popa da embarcação ligeira.
Faz-lhe os últimos reparos:
arranja-lhe ainda uma vez as vestes; arruma-lhes às costas um saco cheio de
ciscalho e pedras; mete-lhe à cintura alguma inútil pistola enferrujada, sem
fechos, ou um caxerenguengue gasto; e fazendo-lhes curiosas recomendações, ou
dando-lhe os mais singulares conselhos, impele, ao cabo, a jangada fantástica para
o fio da corrente.
E judas feito Asvero vai
avançando vagarosamente para o meio do rio. Então os vizinhos mais próximos,
que se adensam, curiosos, no alto das barrancas, intervêm ruidosamente,
saudando com repetidas descargas de rifles, aquele botafora. As balas chofram a
superfície líquida, erriçando-a; cravam-se na embarcação, lascando-a; atingem o
tripulante espantoso; trespassam-no. Ele vacila um momento no seu pedestal
flutuante, fustigado a tiros, indeciso, como a esmar um rumo, durante alguns
minutos, até se reaviar no sentido geral da correnteza. E a figura desgraciosa,
trágica, arrepiadoramente burlesca, com os seus gestos desmanchados, de demônio
e truão, desafiando maldições e risadas, lá se vai na lúgubre viagem sem
destino e sem fim, a descer, a descer sempre, desequilibradamente, aos
rodopios, tonteando em todas as voltas, à mercê das correntezas, "de bubuia"
sobre as grandes águas.
Não para mais. A medida que
avança, o espantalho errante vai espalhando em roda a desolação e o terror; as
aves, retransidas de medo, acolhem-se, mudas, ao recesso das frondes; os
pesados anfíbios mergulham, cautos, nas profunduras, espavoridos por aquela
sombra que ao cair das tardes e ao subir das manhãs se desata estirando-se,
lutuosamente, pela superfície do rio; os homens correm às armas e numa fúria
recortada de espantos, fazendo o "pelo sinal" e apertando os
gatilhos, alvejam-no desapiedadamente.
Não defronta a mais pobre
barraca sem receber uma descarga rolante e um apedrejamento.
As balas esfuziam-lhe em torno;
varam-no; as águas, zimbradas pelas pedras, encrespam-se em círculos ondeantes;
a jangada balança; e, acompanhando-lhe os movimentos, agitam-se-lhe os braços e
ele parece agradecer em canhestras mesuras as manifestações rancorosas em que
tempesteiam tiros, e gritos, sarcasmos pungentes e esconjuros e sobretudo
maldições que revivem, na palavra descansada dos matutos, este eco de um
anátema vibrado há vinte séculos.
– Caminha, desgraçado!
Caminha. Não pára. Afasta-se no
volver das águas. Livra-se dos perseguidores. Desliza, em silêncio, por um “estirão”
retilíneo e longo; contorneia a arqueadura suavíssima de uma praia deserta. De
súbito, no vencer uma volta, outra habitação; mulheres e crianças, que ele
surpreende à beira rio, a subirem, desabaladamente, pela barranca acima,
desandando em prantos e clamor. E logo depois, do alto, o espingardeamento, as
pedradas, os convícios, os remoques.
Dois ou três minutos de alaridos
e tumulto, até que o judeu errante se forre ao alcance máximo da trajetória dos
rifles, descendo…
E vai descendo, descendo… Por
fim não segue mais isolado. Aliam-se-lhe na estrada dolorosa outros sócios de
infortúnio; outros aleijões apavorantes sobre as mesmas jangadas diminutas
entregues ao acaso das correntes, surgindo de todos os lados, vários no aspecto
e nos gestos; ora muito rijos, amarrados aos postes que os sustentam, ora em
desengonços, desequilibrando-se aos menores balanços, atrapalhadamente, como
ébrios; ou fatídicos, braços alçados, ameaçadores, amaldiçoando; outros humílimos,
acurvados num acabrunhamento profundo; e por vezes, mais deploráveis, os que se
divisam à ponta de uma corda amarrada no extremo do mastro esguio e recurvo, a
balonçarem, enforcados…
Passam todos aos pares, ou em
filas, descendo, descendo vagarosamente…
Às vezes o rio alarga-se num
imenso círculo; remansa-se; a sua corrente torce-se e vai em giros muito lentos
perlongando as margens, traçando a espiral amplíssima de um redemoinho
imperceptível e traiçoeiro. Os fantasmas vagabundos penetram nestes amplos
recintos de águas mortas, rebalsadas; e estacam por momentos. Ajuntam-se.
Rodeiam-se em lentas e silenciosas revistas. Misturam-se. Cruzam então pela
primeira vez os olhares imóveis e falsos de seus olhos fingidos; e
baralham-se-lhes numa agitação revolta os gestos paralisados e as estátuas
rígidas. Há a ilusão de um estupendo tumulto sem ruídos e de um estranho conciliábulo,
agitadíssimo, travando-se em segredos, num abafamento de vozes inaudíveis.
Depois, a pouco e pouco,
debandam. Afastam-se; dispersam-se. E acompanhando a correnteza, que se
retifica na última espiral dos remansos – lá se vão, em filas, um a um,
vagarosamente, processionalmente, rio abaixo, descendo…
Imagem ilustrativa: espacounicocriativo.com
Um comentário:
Que lição ...pensei não conseguir, fui indo e me envolvi com o relato histórico...estou seguindo você, e te agradeço por comentares lá, eu fiquei envergonhada com aquele post, mas tava engasgada... Entende?
Muitos beijos e boa semana.
Cliquei no SEGUIR acima, pois não encontrei os seguidores, sou anymery*
*Blog Mery/Rio de Janeiro
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