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domingo, 14 de março de 2010

Cão-de-Sete-Orelhas - Parte II


E era mesmo a vacina. E em todos causou reação: homens arrumando pescarias, caçadas e outras desculpas; crianças em desconsolo querendo escapar; cachorros como em dias de mudança e galinhas escolhidas para estrangulamento.
            Naquele momento, mesmo o melhor conferencista nas artes da medicina, não seria capaz de estabelecer a diferença entre injeção e vacina. Seria o tamanho da agulha, o líquido injetado, o local da aplicação, mas nada, nada que aliviasse a angústia de uma espera certa, fatal. Os argumentos até que eram bons. O sarampo, a catapora, a varíola, a tosse-braba e outras pestes, seriam varridos para sempre. Bons argumentos na fila da vacina, a avançar em cadência anormal, acelerada.
            Os dissabores de um mazelento eram facilmente alardeados e comprovados em qualquer casa. Catapora, tosse-braba, sarampo e papeira, a olho nu, dividiam as pessoas em dois grupos: os que já tiveram e os que teriam.
            A catapora, apresenta-se por pequenas bolhas que erupcionam a pele, coceira agradável, brotoeja boba. O infeliz está infectado há dias e não sabe, depois, as bolhas crescem, aumentam, espalham, nascem nos lugares de maior pudor. O corpo da vítima fica tomado por chagas dolorosas, profundas, da sola dos pés e mãos, até a raiz do cabelo, o rosto, a língua, a garganta... As roupas tornam-se um incômodo. Sem poder usá-las, o infeliz deita na palha da bananeira e aguarda. Aguarda uma solução divina. Sal, sereno, comida reimosa e outros excessos, devem ser evitados. Desmoraliza a ciência, que não encontra solução para tanta desventura. Eleva as benzedeiras à categoria de santas, com suas ervas e seus banhos de cozimento.
            O sarampo, quando açoita em carcaças menos afortunadas, faz de modo temeroso, vítimas e vítimas. Frieira de corpo todo, vermelhidão total, ataca o infeliz em vários “fronts”. Respiração ofegante e impossível, febres, sudoreses, inapetência, vômitos, diarréia e um enfezo no juízo. Como a catapora, apenas a paciência de uma espera.
            A tosse-braba e a papeira, embora menos perigosas, careciam de grandes cuidados, principalmente a papeira, que ao menor esforço físico e extravagância do enfermo, poderia descer para as partes sexuais, e, no caso dos homens, causar esterilidade. E nem esses argumentos eram fortes o bastante para convencer angustiados em fila, nem vacinados em desobjetiva carreira.
            Por tudo falado de antigamente também é verdade, que as mães não precisavam de argumentos para convencer os filhos. Uma boas lamboradas resolveriam o problema. Mas, como ainda hoje, uma boa conversa ensebava qualquer um.
            Diante da equipe vacinadora, quase em maioria, formada por negras carniceiras e carrascos sorridentes, não havia machão. Apresentados, maluvidos, arengueiros e fobentos, se prostravam em mínima eqüivalência. Os que davam cascudos, chulepes, biscas e camas-de-gatos nos menores e raquíticos, estavam ali, naquele momento, estrebuchando também.
             Quatro aparelhos em rodízio, daqueles de vidro, passavam da chama do lampião – para desinfetar a agulha – aos braços retesados pelo medo e por uma tentativa de fuga. Depois da última espetada, quebravam-se as algemas, libertavam-se os cativos, e, em todos os recantos, choramingos e lamentos faziam parte da paisagem. Mas pelo menos um caso fugiu à regra.

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